Agência Panafricana de Notícias

O crime da cumplicidade (II)

Dakar, Senegal (PANA) – A sequência de eventos em torno da crise síria vai dando razão aos que acusam a Rússia e a China de quererem ser “mais árabes que os Árabes”, com pele de "advogados do diabo" que esconde uma agenda mais mercantilista virada para a “preservação dos seus mercados de venda de armas e outros”.

É o que se pode depreender dos sinais de desespero e exaustão emitidos pela Liga Árabe, que ficou sem soluções, senão meras sanções económicas, como último recurso, após esgotar as suas tentativas diplomáticas para travar o líder sírio na sua determinação de ir até às últimas consequências confortado, aparentemente, pela linha vermelha traçada pelos seus mega-aliados de Moscovo e Beijing contra qualquer intervenção estrangeira.

É o que se pode depreender ainda da esmagadora condenação contra as atrocidades do regime de Bashar Al-Assad expressa na resolução da Assembleia Geral da ONU aprovada pouco antes pela sua Comissão dos Direitos Humanos, em 21 de novembro de 2011, com o apoio da maioria dos países árabes.

Para além de mostrar a indignação mundial contra o obstrucionismo russo-chinês a favor de tiranias no mundo árabe que forçou o recurso à Assembleia Geral para contornar o Conselho de Segurança (CS), transformado em “campo minado” pela dupla comunista, os resultados daquela votação revelam ainda alguma incoerência no posicionamento desta aliança.

Dos 176 países participantes, quase dois terços votaram a favor (122), mas a China e a Rússia não figuram entre os 41 que se opuseram, optando estranhamente pela abstenção (13), em vez do seu voto “contra” habitualmente usado no Conselho de Segurança na mesma questão.

Por seu turno, as sanções da Liga Árabe de 27 de novembro de 2011 contra o regime sírio, mais ou menos similares às vetadas semanas antes pelo par vermelho no Conselho de Segurança da ONU, tiveram a adesão de 19 Estados-membros de um bloco formado por 22 países, incluindo a própria Síria atualmente suspensa.

Outra evidência de que os dois aliados dificilmente serão “mais árabes que os Árabes” veio da Arábia Saudita, em Riade, uma das capitais árabes mais influentes, onde Ali Abdullah Saleh assinou a sua renúncia ao poder, no Iémen, por pressão do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), um outro agrupamento regional de países árabes.

Depois de muita hesitação que quase lhe custou a vida, Saleh assinou finalmente a sua demissão, a 24 de novembro de 2011, em troca de imunidades civis e penais, mas com um balanço de centenas de mortos da repressão de uma sublevação popular, iniciada em fevereiro de 2011, contra os seus 33 anos de governação.

A campanha russo-chinesa contra o Ocidente, acusado de querer livrar-se de “regimes que se tornaram ruins para os seus interesses”, é ainda desafiada pelo surto constante de vozes individuais árabes que passaram a ser, à semelhança da Jordânia e do Qatar, mais radicais e sonantes contra o despotismo de Al-Assad, exigindo a sua partida imediata e incondicional.

O primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, seu vizinho do norte, tem-se destacado entre os líderes árabes mais agastados com a sua obsessão ao poder, e muito crítico à inação daqueles que, num passado recente, se mobilizaram em tempo recorde contra Kadafi, na Líbia.

Erdogan, cujo país extraocidental acolhe o grosso dos refugiados sírios desde o início da violência, entende que Al-Assad devia partir “para o bem do seu próprio povo”, lembrando-lhe os maus exemplos de líderes que tiveram um fim trágico, incluindo Adolfo Hitler.

"Se quer ver alguém que combateu até à morte contra o seu próprio povo, olhe para a Alemanha nazi, para Hitler, e para (outros líderes como) Mussolini (Itália) e Nicolae Ceausescu na Roménia. Se não tirar nenhuma lição a partir destes, então olhe para o líder líbio (Muamar Kadafi), morto há apenas 32 dias”, aconselhou Erdogan numa declaração televisiva.

Talvez por ter as costas mais quentes, não será tão facil convencer Bashar Al-Assad a seguir, pelo menos, os passos do seu colega pró-ocidental do Iémen que, adoentado após escapar à morte, decidiu finalmente “partir”, pouco depois de surpreender tudo e todos chamando de "loucos" aqueles que "se agarram ao poder".

Para alguns observadores, a atual postura russo-chinesa tem a dupla função económica e ideológica que consistiria em preservar clientes para os seus mercados e, ao mesmo tempo, mostrar que o fim da Guerra Fria só “ofuscou” a sua projeção geopolítica mas deixou intacto o seu contrapeso ao bloco capitalista nas grandes questões internacionais.

Por outras palavras, a queda do emblemático Muro de Berlim que simbolizou o fim da Guerra Fria com a unificação da Alemanha, em 1989, em nada teria afetado a estrutura do poder na ordem internacional, tal como o demonstram as dificuldades na gestão dos conflitos que afligem o mundo contemporâneo, incluindo estes corolários da chamada Primavera Árabe.

Assim sendo, a propalada passagem da bipolaridade para um mundo unipolar, com os Estados Unidos como a única superpotência sobrevivente, só teria sido parcial, já que, mesmo com o poderio político-militar soviético suplantado pela sofisticação americana, em termos de intervencionismo, "o eixo comunista ainda detém uma última palavra nas decisões mundiais".

Segundo os mesmos observadores, esta bipolarização “latente” caminha perigosamente para a inviabilização de instâncias tão indispensáveis para a sobrevivência da humanidade como a ONU e o seu Conselho de Segurança, se não for encontrada a tempo uma solução definitiva.

Por isso, os menos pessimistas acreditam que o desfecho da Primavera Árabe no seu todo poderá ajudar a impulsionar as reflexões sobre as tão sonhadas reformas do sistema da ONU, nomeadamente a democratização do seu Conselho de Segurança, um projeto que já se arrasta há anos mas que continua atirado para as "calendas gregas" por falta de consenso.

Analistas próximos das negociações sobre a questão falam em obstáculos que vão desde “erros táticos a manobras diversionistas dos opostos à reforma, passando por ambições contraditórias, hesitações e desentendimentos no seio da maioria dos Estados-membros”.

O maior de todos os obstáculos, dizem, seria a colisão entre a inadmissibilidade da extensão do poder de veto a eventuais novos membros do Conselho, defendida pelos atuais titulares, e a determinação, sobretudo de África, a obter esta prerrogativa a todo o custo, o que teria impossibilitado a aprovação da primeira resolução que lançaria o processo de reformas.

Fala-se em várias propostas de alguns países ou grupos de países para modificar a estrutura orgânica da organização, mormente o alargamento do CS e a alteração dos seus métodos de trabalho, mas assentes em posições de difícil aproximação quanto à qualidade e à dimensão.

Mais uma vez, a China estaria à frente das nações avessas a mudanças significativas no Conselho de Segurança, não por estas disporem de alternativas mais credíveis mas apenas para impedir a entrada como membros permanentes de “países com os quais têm rivalidades, conflitos abertos ou cuja entrada desvalorizaria simplesmente o seu estatuto regional”.

Isolada dos demais “colegas” permanentes, até do seu aliado de Moscovo, ela "assume abertamente" a sua oposição à entrada do Japão, um dos mais fortes aspirantes a assento permanente e apoiado pelos Estados Unidos, por França, pelo Reino Unido e pela Rússia.

Velhas rivalidades entre os dois vizinhos asiáticos estariam na origem da animosidade onde uma ascensão nipónica cairia para a China como uma verdadeira "bomba" para a sua hegemonia regional com "alterações fundamentais" na configuração da liderança asiática, estabelecendo uma certa igualdade de poder decisório internacional e influência local.

Ao lado disso, o Japão é descrito como o segundo país no mundo que mais gasta com a defesa, para além de ser, depois dos Estados Unidos, o segundo maior contribuinte financeiro da ONU, seguido da Alemanha e à frente mesmo dos permanentes Reino Unido e França.

A Alemanha estaria também no mesmo grupo de pretendentes ao lado de gigantes emergentes como o Brasil e a Índia, proposta já denunciada pela China como “perigosa” e suscetível de “descarrilar todo o processo de reformas”, tudo por causa dessa projeção nipónica.

Este grupo, que passou a ser designado por “G-4”, defende ainda a inclusão de dois países africanos, igualmente como membros permanentes, e quatro outros de regiões diferentes como não permanentes, elevando assim a composição do CS dos atuais 15 para 25 membros.

França é apontada como o primeiro dos atuais detentores do veto a pronunciar-se “claramemente favorável” à reforma, seguida dos Estados Unidos que, apesar duma hipotética pressão chinesa, passaram a aceitar “a ideia de membros permanentes do mundo em desenvolvimento”, embora insistindo numa expansão máxima do CS até 21 membros.

Por seu turno, a preferência chinesa estaria mais inclinada para o projeto alternativo liderado por Itália, México, Argentina e Paquistão, que preconiza uma ampliação do Conselho de Segurança sem a criação de postos permanentes com poder de veto, numa demonstração clara de confrontações ou atritos entre os candidatos das três regiões em presença.

Cada região aparece assim com dois ou mais candidatos a rivalizar-se, tais como Itália contra Alemanha (Europa), Argentina e México contra Brasil (América Latina) e Paquistão contra Índia (Ásia). Os Germânicos seriam ainda contestados por Espanha, enquanto a Coreia do Sul estaria propensa a alinhar na oposição chinesa contra a candidatura japonesa.

Por seu turno, com propostas apodadas de “irrealistas ou pouco sérias”, o continente africano também não escapa a divisões. Os primeiros projetados na disputa por vagas permanentes seriam a África do Sul, o Egito e a Nigéria, havendo igualmente sinais de que Angola, Argélia, Quénia e Senegal estariam descontentes com a ideia de ficarem de fora.

Mas a maior resistência vem dos mais radicais, que advogam uma reforma “mais qualitativa do que quantitativa” com uma dilatação do Conselho de Segurança acompanhada pela supressão pura e simples do direito de veto para que as decisões deste órgão "passem a ser tomadas de forma mais democrática, por maioria de votos e com base em novos critérios".

No entender desses “radicais”, postos permanentes sem poder de veto não fazem sentido, para além de a própria divisão em membros permanentes e não permanentes aliada à regra da unanimidade constituir “uma negação flagrante da igualdade de soberania dos Estados”.

Obviamente, é inimaginável que os atuais detentores do veto, ainda que favoráveis ao princípio da reforma, aceitem chegar ao extremo de ficar reduzidos a “zero” pela perda de um privilégio que se converteu na sua arma principal para equilibrar a confrontação entre si na manutenção, gestão e proteção dos seus interesses geoestratégicos e geopolíticos.

Numa posição intermédia estariam os que reconhecem que o veto resulta de “circunstâncias históricas” e que, sendo a relevância dos Estados Unidos “clara” e a da China “cada vez mais óbvia”, é inquestionável o direito destes dois a tal privilégio e legítima a sua extensão a novos membros com suficientes argumentos para ombrear com países como França e Reino Unido.

Mas a estes, os “radicais” retorquem que a ONU não deve continuar indefinidamente “presa” ao pretexto histórico para justificar a manutenção do estatuto especial dos seus membros vencedores da II Guerra Mundial, uma vez que, justificam, a população atual dos países vitoriosos e derrotados não é responsável pelo que aconteceu neste conflito.

Por outro lado, sublinham o facto de este aspeto histórico não corresponder rigorosamente ao peso dos países no financiamento da organização, quando se sabe que nações como a China e a Rússia nem sequer figuram entre os cinco maiores contribuintes da ONU, sendo os “seus lugares” preenchidos paradoxalmente por tais perdedores como o Japão e a Alemanha.

“Insistir na historicidade é fazer justiça aos Estados Unidos, que pagam a fatura mais pesada de todos – quase 22 vezes a da Rússia e sete vezes a da China – e ao mesmo tempo fazer injustiça ao Japão, à Alemanha e à Itália que, apesar de perdedores, têm as suas contribuições individuais ao orçamento da organização muito acima das da China e da Rússia juntas”, destacam.

A tabela das contribuições, liderada pelos Estados Unidos com 22 porcento, tem o Japão e a Alemanha respetivamente nas duas posições imediatamente seguintes com 12,53 porcento e 8,01 porcento, enquanto a Itália é o sexto maior financiador com 4,99 porcento contra 2,67 porcento da China (oitavo) e 1,60 porcento da Rússia (13º) atrás do Canadá (sétimo) com 2,98 porcento.

No caso particular da Rússia, para além de não constar entre os 10 primeiros, ela é ainda superada pela Espanha (nono) com 3,17 porcento, pelo México (10º) com 2,35 porcento, pela Coreia do Sul (11º) com 2,26 porcento e pelos Países Baixos (12º) com 1,85 porcento, segundo o orçamento de 2011.

De qualquer modo, a tendência geral dos países industrializados e em desenvolvimento é para uma adesão maioritária à proposta do G4 cujos integrantes estariam dispostos a abrir mão do direito de veto por um período "transitório" de pelo menos 15 anos, enquanto se espera por uma revisão definitiva.

Fora da vertente qualitativa, alguns especialistas do Direito Internacional divergem igualmente sobre o número de novos membros a admitir, que varia entre os 20 e os cerca de 30 ou mais.

Para uns, um maior número de membros vai conferir ao CS a representatividade geográfica e demográfica necessária para tornar as suas decisões “mais legítimas” e capazes de garantir uma ordem mundial mais justa e segura. Mas outros receiam que uma dilatação “excessiva” poderá, pelo contrário, enfraquecer a sua eficácia pela multiplicidade de polos de decisão.

Estes últimos acham que um “escancaramento desmedido” do Conselho pode dificultar o seu processo decisório, pois um número elevado de países com poder de negociação e influenciação “complicará as decisões diretamente, pelo uso do veto, ou indiretamente, sem ele”.

Por outras palavaras, explicam, “quanto maior for o número de Estados detentores da capacidade de bloquear o sistema, maior será o risco de o ver efetivamente bloqueado” e transformado numa outra “Assembleia Geral” marcada pela igualdade entre os Estados e pela “perfeita incapacidade de agir”, o que, a seu ver, seria desastroso face às suas responsabilidades de garante da paz e da segurança mundiais.

Logo, se não conduzir a um fiasco total, este impasse vai seguramente persistir por muito mais tempo, em virtude deste mar de dificuldades na harmonização de posições agravadas pela rigidez da Carta das Nações Unidas quanto à alteração da estrutura orgânica da organização, só possível com o assentimento dos cinco “vetistas”, segundo o seu Artigo 108.

E a primeira hipótese parece ter maior probabilidade de triunfar, a julgar pela trajetória das negociações nas últimas duas décadas. Um tal cenário signficará, obviamente, a manutenção do “statu quo” de um mundo de quase 200 nações “soberanas” feitas reféns da vontade e dos caprichos de uma ínfima elite de cinco países com interesses raramente coincidentes.

Significará igualmente continuar a sujeitar o mundo às mesmas consequências sofridas hoje, expondo de forma irreversível as contradições da própria Carta das Nações Unidas, a começar pela igualdade das nações (pequenas e grandes) reconhecida na letra e negada no espírito, ao lado da dignidade da vida humana, formalmente consagrada mas diariamente profanada e desprotegida.

Significará ainda pôr em causa conceitos como o de “crimes contra a humanidade” para denotar “crimes da humanidade”, porque praticados por humanos sob o olhar silencioso, impotente ou negligente de uma humanidade que se recusa a adaptar-se à realidade do seu mundo atual, porque incapaz de alterar leis que ela criou há anos, num contexto histórico completamente diferente.

Signficará igualmente que as culpas que hoje se pode imputar à ONU, enquanto organização, ou aos donos do veto, pelas consequências dos seus atos ou das suas omissões, passarão a ser extensivas a todos, porque todos somos ONU e todos somos membros dela ou a ela pertencemos.

Signficará isso, por outro lado, que, enquanto “Nações Unidas” forem sinónimo de “Todos”, será uma incoerência cristalina e ridícula condenar-se a ONU pelas suas falhas ou decisões “não acertadas” e procurar demarcar-se dela para só se rever nela quando ela “acerta” e decide a nosso favor ou a favor do nosso cliente ou amigo, mesmo conhecendo como funciona o seu sistema decisório.

Significará pura incoerência conservar uma organização criada para proteger a humanidade, mas impotente para o fazer; ou continuar a pertencer a ela, com muito esforço humano e material, quando não somos capazes de nela fazer valer a nossa vontade coletiva um único dia sequer.

Significará, outrossim, igualar a organização a entes regionais em vias de extinção, reduzidos a circos para o jogo não dos interesses nacionais dos povos mas dos interesses pessoais dos chefes, o que chocaria frontalmente com o seu Tratado cujo preâmbulo é deliberadamente introduzido pelo “Nós, os povos das Nações Unidas” e não pelo “Nós, os chefes de Estado e de Governo" das Nações Unidas.

E, finalmente, quando há tragédia humana por fracasso de esforços seus para evitar hecatombes, tal como seria desejável – devido a desavenças entre os donos da última palavra – , não será isso participação de todos nos crimes contra a humanidade, indiretamente ou por cumplicidade?

Por Fred Cawanda (Panapress)

-0- PANA IZ 28nov2011