Agência Panafricana de Notícias

Guiné-Bissau e a política de avestruz (I)

Dakar- Senegal (PANA) – Com ou sem razão, os militares na Guiné-- Bissau insistem em não querer ouvir falar de golpe (de Estado), contra todos os argumentos que apontam neste sentido no contexto dos factos que passaram a caracterizar o cenário pós-Nino Vieira.
É uma espécie de negacionismo que traz aos estudiosos das Ciências Políticas uma nova “matéria-prima” para um debate capaz de situar o lado da razão e enquadrar teoricamente a situação reinante no país.
Mas, enquanto isso, a vida quotidiana na capital bissau-guineense não parece disposta a esperar pelo fim dum tal debate e, desde cedo, apressou-se a ir corporizando a ideia de uma subversão velada.
A cada dia que passa, os esforços dos militares para negar o facto são, inadvertida ou intencionalmente, traídos por actos que, de tão flagrantes, tendem a confirmar o que os ditos procuram desmentir.
Desde actos de puro vandalismo impune e atentatórios à integridade física e aos demais direitos fundamentais dos citadinos, à usurpação clara da autoridade judicial e asfixia latente do poder executivo, os militares estarão a remar à contramão do seu discurso.
Em actos nem sempre assumidos nem controlados, eles passaram a fazer irrupções quando e onde querem para agressões e detenções ilegais de pessoas pacatas e apreensões ou roubo dos seus haveres contra a lacónica justificação da “necessidade de medidas preventivas”!.
Em menos de um mês desde a dupla decapitação do país, o balanço das vítimas dessas incursões era já de cinco altas figuras nacionais das quais duas imediatamente “despachadas” para os cuidados intensivos dada a gravidade dos ferimentos contraídos durante espancamentos.
“Mandaram a minha esposa tirar a aliança, os brincos e os fios bem como outros bens pessoais dos meus filhos.
No meu gabinete, tiraram os computadores e todos os objectos de valor”, dizia uma das presas, o político e magistrado Francisco Fadul jazido numa cama hospitalar.
Segundo ainda aquela justificação, a acção dos militares resulta da inacção das “instituições vocacionadas”.
Porém, não foi dito em que parte do ordenamento jurídico foram extraídos os argumentos legais para sustentar tais competências policiais seguidas de delinquência.
Muito menos se viu reacção alguma à “inércia das instituições vocacionadas” quando dois altos mandatários da nação foram selvaticamente atacados num ápice, dentro e a poucos metros da sede dos militares.
Pelo contrário, o que se viu foi a pronta intervenção de homens fardados para libertar colegas que na altura se encontravam detidos por suspeita de implicação numa anterior tentativa abortada de assassinar o Presidente da República.
Além de que a população bissau-guineense nada ouviu desde então sobre o paradeiro dos libertados e dos seus libertadores, também nunca soube se estes agiram incontroladamente ou coordenadamente.
Em suma, criou-se um quadro tão confuso que põe nitidamente em causa a verdadeira localização da sede do poder, entre os detentores da legitimidade de título e os da “legitimidade” de exercício.
Assim, a descartar-se o enquadramento golpista, e depois de esvaziado da essência republicana, até na Anarquia o país já não cabe uma vez que esta última é caracterizadora de uma “sociedade construída sem governo” ou, simplesmente, “sem chefe”.
E a teoria política tem utilizado o termo golpe de Estado para designar uma mudança súbita de governo imposta por uma minoria que subverte a lei e a ordem, submetendo o controlo do Estado (poder instituído) “a pessoas que não haviam sido legalmente designadas”.
Segundo a Wikipédia, é um termo moderno sucessor do de “revolução”, utilizado antigamente para nomear tais rupturas bruscas da ordem institucional mas agora reservado a “mudanças profundas provocadas por intensa participação popular, da sociedade ou das massas”.
Desde o início, logo após o assassinato quase simultâneo do Presidente João Bernardo “Nino” Vieira e do chefe das Forças Armadas, tenente-general Tagmé Na Waié, a oposição bissau-guineense sempre desconfiou de indícios de um “golpe de Estado não assumido”.
E os desenvolvimentos que se seguiram adicionaram novos elementos, prontamente denunciados por especialistas locais da ciência jurídica como “inconstitucionalidade autêntica”, nomeadamente a promoção do então chefe da Comissão de Crise a chefe das Forças Armadas.
“Há ruptura constitucional (…) grave e inaceitável”, confirma um respeitável constitucionalista da praça que precisa que a combinação dos artigos 71 nº 4 e 68 alínea O da lei magna faz da nomeação dessa figura uma competência exclusiva do Presidente da República eleito.
Por outro lado, generalizou-se internamente o sentimento de que o Estado se exonerou da sua responsabilidade de, através de instituições como os próprios militares, garantir a segurança dos seus cidadãos que agora se sentem abandonados à sua sorte, indefesos.
Com esta sensação de abandono, estes últimos começam a ser dominados pelo espírito de vingança e ódio e pela vontade latente de uma revolta popular como último recurso, não faltando os que vão até recear ou admitir a eclosão, cedo ou tarde, de “um Ruanda II”.
Onde há Estado, dizem, não se mata um Presidente com tanta facilidade como aconteceu com Nino Vieira cujos carrascos “permaneceram longamente” no local e tiveram tempo suficiente de esquartejar o cadáver sem que houvesse uma pronta reacção.
Terá a comunidade internacional despertado, finalmente, para a gravidade da situação no país, depois de anos de indiferença à sua agonia até ser duplamente decapitado, num abrir e fechar de olhos? Ou ainda continuará na sua tradicional “política de avestruz”?